“Não passou de um susto”. Será esta a frase mais adequada para as manifestações que se deram em Maputo? Não se tratou de um fenómeno natural, como um sismo ou uma tempestade. Mas é um fenómeno mais do que natural perante tanta pobreza e injustiça. Será possível aceitar a fome e as desigualdades com uma constante serenidade?
Deixo aqui um excerto de um artigo de Mia Couto.
“Cercado por uma espécie de guerra, refém de um sentimento de impotência, escuto tiros a uma centena de metros. Fumo escuro reforça o sentimento de cerco. Esse fumo não escurece apenas o horizonte imediato da minha janela. Escurece o futuro. (…) Ironia triste: o pneu que foi feito para vencer a estrada está, em chamas, consumindo a estrada.
(…) Eu, como todos os cidadãos de Maputo, necessitaríamos de uma palavra de orientação, de um esclarecimento sobre o que se passa e como devo actuar. Não há voz, não rosto de nenhuma autoridade. Ligo rádio, ligo televisão. Estão passando novelas, música, de costas voltadas para a realidade. (…) Ninguém, excepto uma cadeia de televisão, dá conta do que se está passando.
(…) Os tumultos não tinham uma senha, uma organização, uma palavra de ordem. Apenas a desesperada esperança de poder reverter a decisão de aumento de preços.
Esta luta desesperada é o corolário de uma vida de desespero. Sem sindicatos, sem partidos políticos, a violência usada nos motins vitimiza sobretudo quem já é pobre.
Grave será contentarmo-nos com condenações moralistas e explicações redutoras e simplificadoras. A intensidade e a extensão dos tumultos deve obrigar a um repensar de caminhos, sobretudo por parte de quem assume a direcção política do país. Na verdade, os motins não eram legais, mas eram legítimos. (…)
Os que não tinham voz diziam agora o que outros pretendiam dizer. Os que mais estão privados de poder fizeram estremecer a cidade, experimentaram a vertigem do poder.
(…) tudo o que havia para falar teria que ser dito antes, como sucede com esses casais que querem, num último diálogo, recuperar tudo o que nunca falaram.
(…) No momento quente do esclarecimento, argumentar que os jovens da cidade devem olhar para os “maravilhosos” avanços nos distritos é deitar gasolina sobre o fogo. (…) A luta contra a pobreza absoluta exige um discurso mais rico. Mais que discurso exige um pensamento mais próximo da realidade, mais atento à sensibilidade das pessoas, sobretudo dessas que suportam o peso real da pobreza.”